18 de outubro de 2010

Médico de família



Há pessoas mais velhas que morrem de saudade do médico de família. Contam, com nostalgia, que ele visitava os doentes em casa, ouvia suas queixas, medicava e fazia as recomendações necessárias. Depois, tranquilizava os familiares na sala, ouvia confidências, dava conselhos.

É possível comparar com a velocidade do atendimento no serviço público, nos convênios e mesmo nas clínicas particulares? Por que os médicos atuais teriam perdido essa delicadeza no trato?

Antes de responder, quero deixar claro que não pretendo fazer a defesa corporativa dos profissionais que maltratam pacientes humildes, dos irresponsáveis que sequer os ouvem, dos incompetentes e desonestos que envergonham a profissão.

Estabelecida tal premissa, voltemos à questão: esse tipo de médico foi extinto por várias razões. Primeiro, porque desapareceram as famílias numerosas de antigamente que se reuniam em torno do patriarca para o cafezinho na sala com o doutor. Segundo, porque as cidades pacatas nas quais ele se movimentava não existem mais. Terceiro, porque os honorários recebidos por um médico daquele tempo eram suficientes para uma vida confortável, sem precisar de três ou quatro empregos. E, acima de tudo, porque médico de família era privilégio de poucos.

Nasci durante a Segunda Guerra, no bairro operário do Brás, a quinze minutos da praça da Sé. Quando aparecia um homem com maleta de médico na porta de uma das casas coletivas características do bairro, a molecada do futebol de rua já sabia que alguém estava à beira da morte. Aos sete anos, acordei com os olhos inchados, e meu pai me levou ao pediatra pela primeira vez; na volta, meus amigos queriam saber se era verdade que os pediatras amarravam as crianças na cama para aplicar injeções enormes no traseiro.

Se a quinze minutos da praça da Sé não chegava assistência médica à classe operária, o que aconteceria na zona rural, residência de mais de 70% dos brasileiros na época? Hoje, num país urbano, apesar do descalabro administrativo em que vive parte significativa das unidades de saúde estatais, do desperdício absurdo de recursos e da praga da corrupção que infesta de forma crônica á área pública de saúde, a assistência médica é incomparavelmente mais democrática. Quase 100% das crianças são vacinadas, a maioria das mães faz pré-natal, dá à luz em maternidades e encontra postos de Saúde. Esperam horas para serem atendidas, muitas vezes saem insatisfeitas, é verdade, mas seus filhos são examinados pelo pediatra, luxo inatingível para as crianças da minha geração.

Às custas de perdas salariais e de enfrentar condições precárias de trabalho, não apenas médicos, mas enfermeiras, assistentes sociais e todos os profissionais que prestam serviços de saúde foram os heróis anônimos dessa revolução, que poderia ter sido muito mais abrangente se houvesse menos demagogia política e maior envolvimento da sociedade.

Quando ouço exaltar as qualidades humanitárias dos antigos médicos de família, sinto respeito por eles. Mas o desprendimento dos profissionais de saúde que trabalham nas frentes de batalha recebendo salários baixos para atender gente pobre em comunidades distantes, nos ambulatórios, prontos-socorros e enfermarias dos hospitais públicos me comove muito mais.

O desafio atual é como conciliar o trabalho duro realizado por eles, com a preservação do sentimento de solidariedade diante do sofrimento humano, sem o qual a medicina não tem sentido.



Drauzio Varella

Este post é dedicado ao meu marido em comemoração ao Dia do Médico, 18 de outubro.

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