22 de dezembro de 2010

A dor da perda


Uma amiga perdeu a mãe, de repente. A notícia me alcançou por e-mail, agora que a internet deixou o mundo pequeno. Estou longe, mas também perto, neste lugar sem distância que é o mundo virtual.

Senti tanto o desamparo da minha amiga, porque sei que as mães não deveriam morrer. Quando perdemos alguém que amamos, a dor é tão extravagante que chega a nos comer vivos. A dor está lá quando acordamos. Continua lá quando respiramos. E, quando nos distraímos, crava seus dentes bem no coração. Neste longo momento depois da perda, sabemos mais dos buracos negros do que os astrônomos porque carregamos um dentro de nós. E arrancamos cada dia nosso do interior de sua boca ávida, com uma força que não temos, para que não nos sugue de dentro para dentro.

Devagar, bem devagar, muito mais devagar do que o mundo lá fora nos exige, o vazio vai virando uma outra coisa. Uma que nos permite viver. Descobrimos que nossos mortos nos habitam, fazem parte de nós, correm em nossas veias. Que suas histórias estão misturadas com as nossas, que seus desejos se deixaram em nós. Acolhemos então aquele que nos falta de uma forma que nunca mais nos deixará. Como saudade. E como saudade não poderá mais partir.

Há pessoas que acham que quando doamos as roupas e os objetos de quem amamos e se foi, ou deixamos de chorar no cemitério, superamos a perda. O que acontece é que compreendemos que aquela pessoa não estará mais no mundo externo, não pertence mais a ele. Mas também não é mais um vazio que grita como nos primeiros meses, às vezes anos. Ela agora mora no mundo de dentro, vive como memória nossa, em nós. E assim não está mais morta, mas viva de um outro jeito.

A vida dos mortos em nós não é possessão nem fantasma. Nem é morte. O mórbido é quando não conseguimos dar um lugar vivo para o morto. Então a memória fica pregada naquele momento de horror e a vida se torna impossível, porque a existência não é água parada, mas rio que corre. Acontece quando alguém, pelos mais variados motivos, não consegue fazer o luto e dar um lugar de saudade para a dor. Quando nos fixamos, num dogma ou numa falta, partes importantes de nós gangrenam. Mas quando os mortos se acomodam em nós como lembrança que muda segundo o viver de quem vive, tudo flui. Se há algo que a vida é em essência é movimento. E o luto é um movimento que reabre as portas para a vida ao romper com a rigidez da morte em nós. Por isso, para o luto não pode haver pressa.

Quando sofremos uma grande perda, as pessoas dizem, para nos consolar, que tudo passa. Acho que nada passa. A frase mais precisa seria que tudo muda. Também nós que aqui estamos como matéria um dia seremos apenas eco. Aquela que fui ontem já mudou, a ruga que há um ano não existia agora é visível na pálpebra direita, minha percepção do mundo não é mais exatamente a mesma do mês passado, alterada por novas experiências que me alargaram. De certo modo, nascemos e morremos tantas vezes até o fim da vida. E é este o movimento que importa.

Queria dizer isso à amiga que perdeu a mãe de repente. Com o tempo, um período só dela e que não pode ser determinado em parte alguma nem por ninguém, minha amiga vai começar a perceber que a mãe é uma ausência presente no formato das suas unhas, num certo jeito de mexer a cabeça quando fala, na tonalidade rara dos olhos. Está nas palavras e nas histórias que conversam dentro dela, na mitologia familiar que se perpetua, nos sons da memória. E então poderá reencontrar a mãe dentro dela. E levá-la para passear.

E, num dia que sempre chega, viverão as duas como história, como cacos de lembranças encaixados em diferentes rearranjos de vitrais, na vida dos que vieram depois. É pouco, talvez. É tudo o que temos. 
 
 Eliane Brum
 
Texto resumido por Lena Simões
 
A você, meu pai, que partiu no dia 25 de dezembro de 1996.
A ausência deu lugar à saudade. 

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