27 de dezembro de 2010

Entre tapas e beijos




O novo filme de João Jardim, “Amor?” narra histórias reais de violência nas relações de casal. Depois de ouvir 60 depoimentos de homens e mulheres que cometeram ou foram vítimas de agressões, o diretor escolheu oito para serem interpretadas por atores famosos. Quando assisti à “Amor?”, saí pensando ter visto um filme bom com alguns momentos excepcionais. Depois, passei dias me interrogando a partir de questões suscitadas pelo filme. A força de “Amor?” está em fugir da simplificação: a da pobre mulher submissa espancada por um homem mau.

Os depoimentos nos envolvem e os papéis de vítima e algoz têm contornos menos definidos do que gostaríamos. É nos detalhes que vamos pressentindo a aproximação da violência. Acho difícil que em algum momento quem assiste não se identifique com alguma frase, algum ato, deste laço entre amor e violência que prende dois adultos. É aí que o filme acerta mais. Ao fugir dos casos que viram manchete de jornal, ele fala de uma violência que também é nossa. Com isso, não permite que, ao assisti-lo, permaneçamos descolados, achando que aquilo é acontece a um outro que nada tem a ver com a gente.

Quando um homem agride uma mulher está cometendo um crime. A Lei Maria da Penha foi uma grande conquista. O que é pouco discutido é a contribuição da vítima para a violência. Aqui não me refiro a psicopatas nem a casos extremos, mas sim a histórias mais frequentes e que permeiam a vida de amigos, quando não a nossa.

Em um casal não existe agressor sem que exista uma vítima. Em algum momento agressor e vítima se encontraram. Entender o que permitiu este encontro e o que faz com que ambos fiquem numa relação destrutiva é essencial para quebrar o ciclo de violência ou criar uma outra identidade na relação que não seja a de vítima nem de agressor.

É ruim para a mulher se ela só for vista como vítima e só se enxergar como vítima. Sim, ela foi vítima. Mas ser vítima não é tudo o que ela é. Me parece fundamental que cada mulher metida numa relação violenta consiga buscar dentro de si qual é a sua parte nessa arapuca. Acho difícil conseguir romper com a violência se não encontrarmos o que há de ativo mesmo na nossa passividade. Ao se apropriar do que é nosso é possível nos tornarmos mais inteiras e é possível também criarmos enredos mais interessantes para a nossa vida afetiva.

Existe uma violência que se não se expressa fisicamente e que também é destruidora. Algumas mulheres costumam manipular com maestria esta arma subjetiva que não deixa hematomas. Raramente um homem espanca uma mulher no primeiro dia. Em geral há um longo balé protagonizado por ambos até a primeira vez. E aí as seguintes ficam mais fáceis e, em geral, mais frequentes e violentas.

Ao abrir com um depoimento da vítima tradicional, o filme mostra que não veio para apontar culpados. Apenas retrata histórias de classe média, contrariando a ideia de que a violência doméstica é coisa de pobre. Pode até ser mais visível nas periferias, mas ela está em toda parte, inclusive entre os ricos. O filme conta ainda a trajetória de agressões em uma relação entre duas mulheres, fazendo crer que a violência pertence somente aos homens. Esta é uma das grandes mentiras que se sustentam até hoje.

“Amor?” é uma boa pergunta em forma de filme. Aquelas histórias não tratavam de amor, mas da “patologia da paixão”. É muito reveladora a necessidade de definir se é amor ou não é, desqualificando assim o discurso de homens e mulheres envolvidos em relações violentas quando dizem que, ao bater ou apanhar, ainda amam. Ou que ficam na relação “por amor”.

É muito difícil definir o que é amor. Dizer que uma relação não é amorosa porque contém violência ou que quem ama não bate é querer tornar o amor algo da esfera do sagrado e imune às contradições humanas. Este discurso legitima a violência. Se fosse amor, então, a violência estaria justificada, porque o amor é maior do que tudo, por ele valeria qualquer sacrifício, até apanhar.

Não. Sendo amor ou não, pouco importa. Caia fora o mais rápido possível. A violência aniquila a vida. Quando não acaba, literalmente, com ela.

Eliane Brum

Texto resumido por Lena Simões

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