19 de dezembro de 2010

A pílula do esquecimento


Todos nós temos pelo menos uma lembrança que gostaríamos de esquecer. Eu tenho duas. Adoraria tomar uma pílula e tirar de vez da minha cabeça a cena do raio que quase me fulminou há 16 anos, no Parque de Ibitipoca, em Minas Gerais. Até hoje me lembro da força que me levantou do chão e me atirou para frente. Revejo a faísca que correu pelo chão e sinto o cheiro de enxofre que ficou no ar. A descarga elétrica fez meu cérebro sofrer. Durante minutos não conseguia sentir o lado direito do corpo. Sobrevivi. A lembrança ficou. 

O outro evento que gostaria de apagar foi igualmente marcante. É a do bando de traficantes que me atacou na Favela de Heliópolis, em São Paulo, em 2000, enquanto eu fazia uma reportagem de saúde. Fui ameaçada com um revólver, levei chutes nas pernas e coronhadas na cabeça. Estava grávida de sete meses. Eu e minha filha sobrevivemos. De novo, a péssima lembrança ficou. 

Memórias traumáticas são o foco de investigação da Neurociência. Quando ocorre um evento traumático, ele é registrado por várias células do cérebro que funcionam em cadeia. As células funcionam em rede como se fossem um grupo de testemunhas de um terremoto devastador. 

As pesquisas estão só começando. Ainda vai demorar muito tempo até que uma pílula como essa esteja disponível para uso humano. Mas esse tipo de pesquisa abre espaço para longos debates. A possibilidade de editar memórias provoca enormes discussões éticas, pois uma droga como ajudaria uma pessoa a amenizar memórias traumáticas. Por outro lado, também poderia ser usada para aliviar a consciência do mau comportamento e até de crimes. 

O debate sobre "edição" de memórias é a base do filme Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, com Jim Carrey. Joel recorre a uma clínica para tirar da cabeça a namorada, Clementine (Kate Winslet). Por meio de imagens de ressonância e objetos que o fazem lembrar da moça, os médicos localizam no cérebro o ponto exato onde reside a memória indesejada e destroem neurônios, apagando as lembranças. 

Por enquanto, a limpeza radical de arquivos mentais só existe no cinema. Mas as pesquisas sobre a "pílula do esquecimento" ainda vão dar muito o que falar. Se uma pessoa nada mais é do que o conjunto de suas memórias, seria ético receitar uma pílula capaz de apagar lembranças? Caso um remédio como esse estivesse disponível no fatídico 11 de setembro, o destino dos americanos, do Iraque e do mundo teria sido diferente?  

Conversei sobre isso com o Iván Izquierdo, da PUC/RS. Argentino naturalizado brasileiro, ele é reconhecido no mundo como um dos mais ativos pesquisadores da memória. Perguntei a ele se as vítimas do 11 de setembro deveriam tomar a "pílula do esquecimento" se ela existisse. Ele respondeu: 

"Acho que não. Os americanos não devem apagar essa memória. Precisam se lembrar de que foram atacados. Não é desejável que os cidadãos se lembrem daquilo o tempo todo, pois assim, a sociedade ficaria brutalizada. Mas é preciso aprender a atribuir a cada lembrança seu real valor". 

Pensando bem, acho que ele tem razão. Já não quero apagar minhas duas experiências traumáticas. Preciso delas para ter certeza de que enfrentei o pior e sobrevivi. E para me lembrar todos os dias de que a sorte nunca me abandonou. 


Cristiane Segatto 

Texto resumido por Lena Simões

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