10 de agosto de 2010

Um tapinha dói




Começou pouco depois que se conheceram. Um belo dia, do nada, ele grunhiu: "você não sabe o que diz". Ela tentou se defender, explicar mais uma vez seu argumento que não lhe parecia estúpido. Ele virou as costas e foi se servir de um uísque que não lhe ofereceu. Quer gelo, ela perguntou em voz baixa, já procurando o baldinho e o pegador. O “não” foi seco. Assunto encerrado.

Tudo deveria ter se encerrado ali. Errou. Dois anos depois, já morava com ele e, quando engravidou, admitiu que ele tinha um gênio difícil, que não queria esse filho e que, furioso, a maltratara quando recebeu a notícia. Como se nada tivesse a ver com isso, como se o Espírito Santo a tivesse visitado à revelia dele.

A brutalidade cotidiana ela vai engolindo. Quer salvar a relação, é o pai do seu filho. E vai enveredando pelo caminho do calvário, bem conhecido das mulheres que hipotecaram suas vidas a homens violentos. São elas que viram estatística.

A violência nem sempre é um gesto físico, como uma bofetada. Começa antes, é feita não só de atos, mas de sua ausência, de desacatos, um decreto de inexistência que anula sua vida, um olhar que lhe atravessa como se você não estivesse ali. É uma espécie de direito divino ao que há de melhor em casa, a melhor cadeira, o controle da TV, o espaço na cama, apagar ou acender a luz, o direito de falar e ser ouvido, ao silencio quando trabalha, ao barulho quando recebe os amigos. Direito de ser respeitado em seus desejos. Tudo que a ela é negado.

Quando a violência sanguinária contra as mulheres explode como agora, frequente e macabra, abalando todo o País, essa pergunta volta, insistente. Em que momento começaram os gestos que a anunciavam? Quando acende o sinal de alerta que pressagia o perigo? Cada mulher deveria rever em sua vida as grosserias que deixou passar. Porque aceitou que fosse assim. Isso porque ainda vivemos em um mundo que tudo perdoa aos homens e muito pouco às mulheres, o que é descrito como a ordem natural das coisas. Atenção com o senso comum, o que parece óbvio, o "sempre foi assim", o "é da natureza deles", que disfarça uma ideologia que nos é tão desfavorável.

Cuidado, portanto, para não endossar pela omissão, submissão ou vício de sedução, uma ordem que não só não é natural, mas é injusta. Que, em casos extremos, evolui para se tornar criminosa. E que precisa acabar.

Os números assustadores de casos de violência contra as mulheres sugere que é urgente que elas defendam a sua honra, que não reside em uma suposta pureza, mas no seu estatuto de ser humano, livre e respeitado como todos devem ser. É o princípio de honra feminina que é preciso incutir na nossa cultura e no nosso cotidiano. Que elas não precisam de provedor. Que não devem levar desaforo para casa e, sobretudo, ouvi-los dentro de casa. Nem confundir o carinho, traço atávico da cultura feminina, e o instinto protetor que exercitam na maternidade, com a anulação de si que tudo perdoa.

Um tapinha dói muito e é véspera da chacina...


Autoria: Rosiska Darcy de Oliveira
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