16 de agosto de 2010

Servidão voluntária

O primeiro livro que ganhei de presente foi uma tradução juvenil de "As mil e uma noites", em vários volumes. Eu teria quatro ou cinco anos, ainda não sabia ler, e me lembro de manusear infinitas vezes aqueles objetos pesados, e misteriosos, repletos de cheiros e gravuras, bonitos com sua capa azul e títulos dourados, na frente e na lombada.

Com o tempo, já alfabetizado, passei a devorar seu conteúdo. Além de histórias famosas como "Ali Babá e Aladim", havia outras, muitas outras, menos conhecidas, que exibiam o mesmo repertório de gênios e califas, ladrões, eunucos e mercadores e, sobretudo, marcadas a ferro na minha memória infantil, a mulheres – sempre virtuosas, sempre confinadas a haréns ou à casa de pais devotos e maridos ciumentos, essas criaturas eram tão misteriosas, tão lindas, tão mágicas que, de ver seu rosto, os homens perdiam a razão.

Na semana passada eu estava em Istambul, na Turquia, e a lembrança dessas leituras infantis me tomou de assalto. Eu ia só, sentado num barco que subia o estreito de Bósforo, quando reparei que ao meu lado uma turista muito jovem lia "As mil e uma noites", em espanhol. Tive vontade de falar com ela, pedir o livro emprestado e folhear, contar a história da minha infância com aquela obra – mas faltou coragem. Ela estava tão concentrada, tão absorta, que lembrei de mim mesmo, menino, torcendo para não ser retirado do mundo mágico das histórias de Scherazade.

Ver a capa do livro, mesmo sem manuseá-lo, serviu como uma espécie de gatilho para minhas memórias e para a minha percepção. Colocou-me de frente com o que me cercava: uma cidade com quase três mil anos de história, islamizada desde o século XV, onde os chamado às orações ecoa cinco vezes ao dia do alto dos minaretes. Uma cidade ao mesmo tempo moderna e ancestral, onde garotas com minissaias ultrajantes caminham na rua com garotas da mesma idade quem cobrem os cabelos e escondem o corpo com casacos que vão até os pés.

Como essas duas espécies de mulheres (a laica e a religiosa) como essas duas visões de mundo (a moderna e a tradicional) convivem uma com a outra?

Diante dessas perguntas, todos os turcos com quem conversei me responderam que não havia problemas. Um deles exemplificou com uma pequena estatística familiar: a mulher dele andava com lenço na cabeça, mas a mãe dela, não. Ele tinha duas irmãs, das quais uma era religiosa e a outra não. A mãe dele não era religiosa.Todas conviviam absolutamente em paz. Ou, como ele dizia, “no problem”.

Eu suspeito que não seja tão simples. Acho que há naquela sociedade uma enorme tensão subterrânea entre os religiosos e os laicos - e, para meu espanto, boa parte das mulheres escolhe, voluntariamente, o modo religioso e arcaico de viver. Ou semi-arcaico. Fui a um campo de futebol ver jogar o Galatasaray e havia no estádio mais mulheres do que eu costumo ver no Pacaembu em dias de jogo do Corinthians. Entre elas, vi pelo menos duas adolescentes de lenço na cabeça – vestindo a camisa amarela e vermelha do time e gritando seus hinos de guerra, como todo mundo ao redor, mas de cabeça coberta. Achei a cena estranhamente comovente.

Lembrei do Brasil, como sempre faço quando algo me impressiona no exterior. Pensei no crescimento vertiginoso das denominações evangélicas, na forma como as igrejas se multiplicam pelos bairros pobres (na Turquia, há uma mesquita em cada esquina) e como elas afetam, ou tentam afetar, o comportamento da juventude. Os jovens evangélicos, supostamente, não bebem, não fazem sexo antes do casamento, exibem recato na vestimenta e na atitude. Seriam os nossos muçulmanos? Não sei.

O que eu descobri, em Istambul, é que a vida das mulheres não era exatamente como parecia nas Mil e uma noites. Fui ao harém do sultão, onde chegaram a viver até mil mulheres, e tive do lugar uma péssima impressão. Me pareceu lúgubre, triste, deprimente mesmo. As concubinas eram aprisionadas pela vida inteira e, frequentemente, morriam ali, depois de uma vida sem finalidade e sem alegria. Por que tantas mulheres de Istambul cobrem a cabeça e o corpo, se vinculando simbolicamente a esse tipo de pressão? Não sei. Não entendo. Não gosto.


Autor: Ivan Martins

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