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9 de julho de 2012

No silêncio



Uma vez já ouvi de alguém: tenha cuidado, porque a mente, mente! Na época, prestei pouca atenção a isso, mas de uns tempos para cá tenho me pegado pensando que isso é uma afirmativa correta e que, muito mais que isso, eu ando muito cansada de viver no mental. Que coisa cansativa, nem dormindo a gente tem descanso... enquanto meu corpo deita, relaxa e acorda mais renovado, a mente não me deixa em paz, falando, falando, mostrando-me cenas... enfim, procurando me comandar, ordenar minha vida da forma que deseja, deixando-me quase nenhum espaço para que eu me sinta, me ouça. É uma tirana, a mente, e vem com as vozes de inúmeras pessoas que muitas vezes nem conheço e que se acham no direito de me dizer o que “devo ou não fazer”. Isso é muito sério! Mesmo quando acordo, durante a noite, percebo que não estava tranquilamente descansando, mas vivendo naquele mental que não me deixa em paz! 

Pelo menos, uma coisa eu já consegui: tomar consciência disso. A verdade não está me fazendo bem, mas me dá condição de procurar mudar. Uma vez eu vi um filme, muito tempo atrás, em que havia uma livraria e a pessoa que lá entrava, ao invés de ver livros arrumados nas prateleiras, ouvia vozes, muitas vozes, que lhe falavam frases, estórias, pensamentos, teorias... sem parar. Uma poluição sonora, que criava uma poluição mental. Uma confusão enorme, um horror! Essa imagem está me vindo muito clara agora. Como podemos sequer respirar e sobreviver, quando essas vozes todas foram convidadas a viver dentro de nós? Deve haver uma forma de deletar as que são mais fortes, mais autoritárias, as que acham que sabem tudo, as que não nos deixam escolhas, as que nos escravizam. Os mestres orientais sentam-se na posição de lótus e, no silêncio, afastam as “vozes” e se escutam. Que beleza! Que alívio! Que momento revitalizador e restaurador. E assim, na imobilidade, eles acreditam que vivem em plenitude. Eu os compreendo mais e mais. 

Já tentei meditar e não tem sido fácil pra mim, pois as “vozes” se revoltam e ainda gritam mais, numa revoada constante de pensamentos que se cruzam pra lá e pra cá, dando-me agonia e me fazendo sair da tentativa de meditação. Porque elas querem e exigem ser ouvidas e obedecidas, porque já tomaram conta de meu ser e eu quero, no momento, uma outra coisa bem diferente: quero o silêncio... quero me sentir e poder me ouvir, se palavras forem necessárias. Quero me entregar, quero me receber, fazer contato, me amar. Isso é o que quero. Silêncio! 

Não sei se você que me lê está compreendendo, como eu gostaria, porque muitas vezes as palavras me fogem. Mas é isso: menos pensar e mais relaxar e amar. Só e simplesmente isso. É o que vou, de agora em diante, me empenhar em viver. E o que estou sentindo pra lhe dizer.


Maria Cristina Tanajura

18 de setembro de 2010

Noite inesquecível



Penso duas vezes antes de receitar um remédio para dormir. Não que tenha sido contaminado pela filosofia dos que se consideram naturalistas modernos, portanto inimigos de soluções químicas. Nem que tenha preconceito contra os insones ou julgue esses medicamentos ineficientes, perigosos e cheios de efeitos colaterais; pelo contrário, a indústria farmacêutica desenvolveu drogas seguras capazes de induzir sono reparador com o mínimo de ressaca no dia seguinte.

É justamente essa eficácia farmacológica a fonte de minhas incertezas. Distúrbios do sono são um dos grandes pesadelos da vida urbana; afligem milhares de mulheres e homens que atravessam a madrugada sem achar posição na cama, com a cabeça ligada nos compromissos a cumprir, em problemas sem solução e nas cicatrizes deixadas pelo passado remoto.

O problema com o uso de qualquer droga psicoativa é o fenômeno da tolerância, estratégia que o cérebro engendrou para adaptar-se à presença constante da droga na circulação sanguínea.

É a tolerância que explica por que, na adolescência, ficávamos embriagados com um quinto da dose de álcool que bebemos hoje sem dar vexame. É ela que arruína as finanças dos usuários de cocaína, faz o maconheiro velho queixar-se da qualidade da maconha atual e torna dependente de pílulas para dormir a legião dos que padecem de insônia.

Faço essas reflexões por causa de um fato sucedido com o doutor Fritz, numa noite de verão. Renomado especialista em cálculos de grandes estruturas, doutor Fritz trabalhava como engenheiro-chefe de uma empresa alemã. Bastava uma ponte tremer, um arranha-céu inclinar meio grau ou um estádio de futebol balançar sob o entusiasmo da torcida em qualquer lugar do mundo, para a empresa convocá-lo com o inseparável computador e a mala pequena com duas mudas de roupa para não perder tempo nos aeroportos.

Era casado com uma conterrânea, com quem teve dois filhos. Depois que os rapazes saíram de casa, a esposa se dedicou em tempo integral aos afazeres domésticos: refeições no mesmo horário, objetos nos locais de sempre, panelas impecavelmente areadas e os cuidados com o jardim que todos elogiavam. O menor desvio da rotina diária deixava-a em pânico; não havia nascido para imprevistos, reconhecia.Formavam um desses casais harmoniosos, em que cada um aceita e se adapta às idiossincrasias do outro.

A organização rígida do lar servia à profissão do marido, homem de pouco falar, fascinado pelo pensamento abstrato e pela racionalidade, desatento à vida social, sempre entretido com os livros no pequeno escritório ao lado da sala, espaço no qual se refugiava todas as noites, com exceção das quintas-feiras em que a Orquestra Sinfônica se apresentava, e dos sábados às 20 horas, quando assistiam aos filmes que a esposa ia buscar na locadora.

A tranquilidade dele, no entanto, foi abalada quando a empresa disputou uma concorrência internacional para a construção de uma barragem gigantesca, que o obrigou a viajar amiúde para um país distante, trocar inúmeros e-mails, manter conversas telefônicas intermináveis e um sem número de vídeoconferências.

A pressão foi tão intensa, que começou a perder o sono. Habituado a ir para cama impreterivelmente às dez e meia, imaginou que se levantasse mais cedo ou se deitasse mais tarde conseguiria dormir melhor, mas as tentativas foram infrutíferas. Seu problema não era o de conciliar o sono, mas acordar duas ou três horas mais tarde, com o pensamento invadido pelos cálculos e os problemas da maldita barragem.

Então, naquela noite fatídica, exausto, decidiu tomar um tranqüilizante, pela primeira vez em 57 anos. Foi para a cama, conversou alguns minutos com a mulher sob a luz do abajur e perdeu contato com o mundo.

Acordou surpreso às sete da manhã. A esposa estava a seu lado de olhos abertos, sorridente e nua:

- Querido, foi a noite mais maravilhosa de nossas vidas.

Doutor Fritz ficou pasmo. Não lembrava de nada.Pouco mais tarde telefonou para o médico, que lhe explicou tratar-se de um tipo de amnésia transitória induzida por tranquilizantes, acontecimento raro, desprovido de maiores consequências. Ele não se conformou, entretanto. O que o inquietava não era propriamente o efeito colateral da medicação. Retornou ao médico, então:

- Sem me lembrar do que fiz, o senhor já imaginou a decepção dela da próxima vez?



Autor: Drauzio Varella