17 de dezembro de 2010

O médico, o monstro e a vergonha feminina

Existem os médicos e os monstros. “Ele é um médico monstro.” Assim uma ex-paciente se referiu ao doutor Roger Abdelmassih, na televisão. Calvo, de cabelos e bigodes brancos, 67 anos, esse especialista em reprodução humana foi preso ao chegar a sua clínica de luxo. A acusação é de abuso sexual contra cerca de 50 mulheres desde os anos 70. Os depoimentos são de embrulhar o estômago.

Alguns homens que se consideram inteligentes e sensíveis perguntam, rindo: “Que droga será essa que deixa as mulheres mais amorosas e submissas?”. Também há os que não entendem por que as mulheres não denunciaram o médico antes: “Elas deveriam sair da clínica e ir direto à delegacia. Por que ficaram caladas?”.

Talvez eles não possam mesmo compreender o alcance do sentimento feminino de vergonha, humilhação, revolta, nojo e culpa. Um sentimento pleno de ambiguidades invade a mulher em episódios que misturam abuso sexual a poder. Médicos podem ter mais poder que chefes ou maridos. Como desmascará-los? Especialmente o médico que promete dar a ela a capacidade de gerar um filho. É visto quase como um deus. Elas se tornam reféns dele e de um sonho.

Nem o advogado de defesa nem o filho dele compreendem o “motivo” das denúncias. O médico escreveu um artigo em que pergunta: “Qual a verdadeira motivação para esse movimento que mais se caracteriza como sanha de vendeta, que se expressa em denúncias esvaziadas de sentido, em acusações perversas, subjetivas, sem materialidade?”.

Pois é, doutor. Não parece haver nenhum motivo nos depoimentos das mulheres além de restabelecer uma verdade, restaurar a dignidade, devolver a humilhação e cassar o médico que, segundo elas, um dia as beijou na boca na cama ginecológica, encostou-as com seu corpanzil na parede, passou a mão em seus seios e corpo. E, segundo algumas, as violentou levantando o lençol que as cobria quando saíam da sedação.

Entre as mulheres que já relataram crimes sexuais na clínica de Abdelmassih, umas conseguiram ter filhos, outras não. O tratamento de fertilização na clínica pode custar R$ 200 mil, dependendo do tempo e da sofisticação. A primeira acusação de abuso, em 2008, foi de uma ex-funcionária. Natural.

As pacientes só ganharam coragem para se confessar vítimas quando houve uma denúncia do Ministério Público. Elas não estavam mais sozinhas. A cena sem testemunhas – “subjetiva e sem materialidade”, nas palavras do médico – poderia vir a público com menos danos morais. Já não seria a palavra de uma mulher anônima contra a palavra de um médico rico, poderoso e influente.

A defesa alegou que o número foi irrisório diante das suas 20 mil pacientes. Eu me pergunto se o número importa para a acusação de crime. Talvez importe para uma conclusão de distúrbio de personalidade. Um médico que trai a confiança e aproveita a vulnerabilidade de uma paciente para atacá-la sexualmente deveria rasgar seu diploma.

No consultório Abdelmassih tem porta-retratos com a mulher, o filho e parece muito sério. Volta e meia anda com um padre pelos corredores, o que reforça sua aura de respeito. No dia 23 de novembro foi condenado pela Justiça a 278 anos de prisão.

Ruth de Aquino

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